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O que cansa

Mariana Rosa


Ter uma filha com deficiência dá mais trabalho.

É uma luta diária.

É mais cansativo.

É mais sofrido.

Como mãe da Alice, essas são algumas das frases que ouço com frequência, quando querem se referir a minha maternidade. Foi preciso tempo para que eu pudesse concordar com cada uma delas. Mais do que isso, foi preciso renovar meu olhar sobre o mundo para que eu pudesse transpor as razões do senso comum que fundamentam cada uma dessas afirmativas.

O vínculo amoroso que construímos, diariamente, me esclarece, me ampara, me amplia horizontes. As causas do trabalho dobrado, da imprevisibilidade, da peleja, do cansaço, do sofrimento em torno de nossa convivência não residem na condição de deficiência de minha pequena Alice. Imaginar que uma pessoa com deficiência tem a vida mais penosa do que aquela que supostamente não a tem seria o mesmo que supor que existe um padrão de ser humano projetado para ser feliz. E que todos os o que fogem a essa regra terão o sofrimento como destino. Nem uma coisa, nem outra. É de gente que falamos. E gente não tem padrão. Não tem controle de qualidade, código de barras, reprodução de modelo. Gente é única. É diversa. É diferente. O que pressupomos como mais difícil na vida de cada um talvez possa revelar, também, nossa reduzida experiência com as diversas manifestações da vida.

O que dá mais trabalho quando se tem uma filha com deficiência não é ter que carregá-la no colo quando ela já deveria estar andando de forma independente. É ter que carregá-la no colo porque as paredes são estreitas, porque a rampa não funciona, porque o único acesso é a escada, porque o elevador estragou.

A luta diária não é por vê-la acometida por eventuais enfermidades, mas por ter necessidade de medicamentos de alto custo que deveriam ser garantidos pelo Estado, mas estão em falta. Por precisar pagar do próprio bolso tratamentos, profissionais, transporte para que sejam garantidos a ela os mesmos direitos que as demais crianças, como se isso fosse um ônus devido por mim por ter uma filha com deficiência. Como me disse um médico certa vez: “mãezinha, você não serve para ter filho. Vem com defeito”. E cada vez que os recursos que deveriam ser universais nos são negados, é como se esse médico continuasse a dizer: ”agora arque com seu prejuízo”.

Cumprir uma agenda de cuidados e dormir menos do que gostaria não é o que mais cansa. O que exaure é ter que lutar por uma vaga na escola, por uma vaga de emprego, por uma calçada em condições de tráfego, por um transporte acessível, por um parque que seja para todos.

Sobretudo, o que faz nossa experiência mais sofrida, como quer o senso comum, não é ter uma filha com limitações, dependente dos meus cuidados a longo prazo. O que dói mesmo, fundo, é desviar dos olhares que erguem muros.

As dificuldades que vivenciamos, dia após dia, não estão – e nunca poderão estar – justificadas na condição da existência de minha filha. Ela é o que é: inteira, sabida, doce, inteligente, desbravadora. Suas limitações não podem ser sentidas em si mesmas, como “problema de fábrica”, mas na qualidade da interação que o mundo se permite estabelecer com pessoas como ela. Vivêssemos num país menos excludente, mais maduro para lidar com as diferenças, um lugar que respeitasse e valorizasse a diversidade de forma inequívoca, que assegurasse o direito de sermos quem somos, nossa situação poderia ser muito mais aprazível.

A despeito de tudo isso, renovamos fôlego, força e resistência em nossos momentos memoráveis de alegria, sutileza, descobertas. Como ontem, quando coloquei uma ópera para ela ouvir, em casa, pela primeira vez, o que a provocou a sorrir e a abrir a boca com vigor a cada agudo prolongado do tenor. Uma dublagem assumida pela ternura. Tomada pela beleza do momento, lembrei que havia ópera em teatro da cidade. Seria uma experiência incrível! Seria… mas, da última vez, os lugares reservados aos cadeirantes só eram acessíveis após vencidos alguns lances de escada. Cansa! De volta ao nosso lugar, o tenor entoou outro agudo a pleno ânimo. Juntas, eu e Alice também preenchemos os pulmões de novos ares. Hoje sabemos que não temos que mudar quem somos. Temos que buscar lugar no mundo que caiba quem somos. Sem rancor, com amor.

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